Quarta, 11 Dezembro 2024 16:20

Jack Responde: É verdade que os indígenas tupinambás eram “canibais”?

Imagem do mascote Jack questionando se é verdade que os tupinambás eram canibais. Imagem do mascote Jack questionando se é verdade que os tupinambás eram canibais. Amanda Iamaguchi

Olá, caros leitores!

Nesta semana esclareceremos uma pergunta de um leitor que gostaria de saber se, de fato, os tupinambás eram mesmo canibais. Para nos ajudar a responder, contaremos com a ajuda do professor de história do IFMG-Bambuí, Gabriel Abílio de Lima Oliveira.

Jack Responde: É verdade que os indígenas tupinambás eram “canibais”?

Por Gabriel Abílio de Lima Oliveira (gabriel.oliveira@ifmg.edu.br)

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Figura 1: Antropofagia tupinambá, por Theodor de Bry.
Fonte: https://www.tecconcursos.com.br/questoes/1953479

Os povos tupinambás, do tronco etnolinguístico tupi, estiveram entre os primeiros povos indígenas que os portugueses encontraram no início da colonização do espaço territorial que viria a ser o Brasil. Esses povos sofreram distintas violências a partir do contato com os europeus. Além do genocídio, os tupinambás, e outras sociedades originárias da atual América, foram sobmetidos a uma série de narrativas eurocêntricas, que partem da ideia de superioridade europeia e contribuem para percepções errôneas sobre os costumes e tradições ameríndias. Entre as noções eurocêntricas mais difundidas sobre os povos originários da América está a de que os tupinambás eram “canibais”, no sentido de que tal prática fazia parte de seu sustento nutricional físico. Trata-se de uma leitura equivocada dos rituais de antropofagia do canibalismo ”bélico-sociológico” tupinambá, conforme apontou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Para superar tais equívocos, é preciso situar brevemente a história tupinambá, analisar a visão eurocêntrica sobre a antropofagia e buscar a complexidade histórico-antropológica desse aspecto da cultura material e imaterial tupinambá.

Segundo Carlos Fausto, no artigo Fragmentos de história e cultura tupinambá, no início das invasões europeias, os tupinambás ocupavam uma faixa que ia desde parte do atual litoral norte de São Paulo até a região dos Lagos no Rio de Janeiro, além de uma linha territorial que se estendia do Recôncavo Baiano até a foz do Rio São Francisco. Viviam em aldeias de quatro a oito ocas, de 500 a 3000 pessoas. Provavelmente sem autoridade comum, essas comunidades uniam-se e dividiam-se em conflitos a partir de critérios diversos, incluindo momentos nos quais combatiam ou auxiliavam os europeus em seus objetivos estratégicos. Acostumados à guerra e cientes da nova configuração de forças em seu território, os ameríndios da costa mobilizaram-se diante de conflitos europeus transportados para a América.

Exemplo maior dessa divisão dos povos ameríndios do atual Brasil diante das disputas europeias foi a Confederação dos Tamoios (1554-1567). O termo tamoios designava os tupinambás que viviam na costa dos atuais Estados de São Paulo e Rio de Janeiro. À época, os franceses iniciaram uma tentativa de colonização na cidade do Rio de Janeiro e foram apoiados pelos tamoios contra a autoridade colonial portuguesa. Outros povos indígenas, a exemplo dos tupiniquins, apoiaram os portugueses, que venceram a disputa contra os franceses.

A história da Confederação dos Tamoios foi, em parte, contada por Hans Staden (1525-1576), mercenário de origem germânica e auxiliar dos portugueses em suas violências contra os povos ameríndios do atual território brasileiro. Staden foi capturado pelos tamoios e passou nove meses na condição de prisioneiro, sob ameaça de ser devorado por seus anfitriões. Ao longo do tempo em que esteve entre os tamoios, Hans Staden escreveu Viagem ao Brasil, um relato carregado de imagens eurocêntricas e, ao mesmo tempo, relevante para a compreensão dos múltiplos e complexos significados da cultura material e imaterial dos tamoios, ou tupinambás. Vale a pena ler uma passagem na qual Staden descreve o momento em que será consumado o sacrifício de um prisioneiro pelo coletivo indígena:

(...) aquele que deve matar o prisioneiro pega na clava e diz: “Sim, aqui estou, quero matar-te, porque os teus também mataram a muitos dos meus amigos e os devoraram.” Responde-lhe o outro: “Depois de morto, tenho ainda muitos amigos que decerto me hão de vingar.” Então desfecha-lhe o matador um golpe na nuca, os miolos saltam, e logo as mulheres tomam o corpo, puxando-o para o fogo; esfolam-no até ficar bem alvo (STADEN, 2014, p. 179).

A naturalidade com que o diálogo ocorre soa estranha aos ouvidos acostumados às guerras modernas, perpetradas por Estados nacionais que se tornaram máquinas genocidas e empreenderam a eliminação física e moral de vastos contingentes populacionais. O exemplo dos ameríndios é emblemático e foi relatado com detalhes por Bartolomeu de las Casas na obra O paraíso destruído. O religioso, funcionário da Coroa de Madrid, narrou as “crueldades estranhas” cometidas pelos espanhóis. Segundo las Casas, “os espanhóis nunca tiveram nenhuma guerra justa contra os índios” (LAS CASAS, 2008, pp. 31 e 37). O conceito de “guerra justa” relacionava-se à justificativa encontrada por Portugal e Espanha para explorar os povos originários do chamado Novo Mundo do modo que melhor servisse aos desígnios dos grupos de interesse envolvidos na violência colonial. Nos casos em que os povos ameríndios não aceitassem a imposição do catolicismo europeu, o domínio pela força explícita estaria justificado. Ainda de acordo com las Casas:

A causa pela qual os espanhóis destruíram tal infinidade de almas foi unicamente não terem outra finalidade última senão o ouro, para enriquecer em pouco tempo, subindo de um salto a posições que absolutamente não convinham a suas pessoas; enfim, que por serem tão dóceis e tão benignos foram tão fáceis de subjugar; e quanto os índios acreditaram encontrar algum acolhimento favorável entre esses bárbaros, viram-se tratados pior que animais e como se fossem menos ainda que o excremento das ruas; e assim morreram, sem Fé e sem Sacramentos, tantos milhões de pessoas. (LAS CASAS, 2008, p. 29).

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Figura 2: Violência espanhola contra os povos ameríndios, por Theodor de Bry.
Fonte: Bartolomé de las Casas

Feitas as observações quanto à idealização que las Casas faz sobre os ameríndios, uma análise conjunta de seu texto e do texto de Staden permite considerações relevantes sobre os significados da ritualística guerreira tupinambá em comparação com os objetivos e justificativas da guerra colonialista europeia. Entre os tupinambás, o domínio do prisioneiro transcende o seu uso utilitarista e a sua eliminação, típicos da violenta expansão europeia colonialista em busca de recursos estratégicos para a reprodução do capitalismo mercantil. Entre os tupinambás, essa dimensão manifesta-se para além da satisfação em sobrepor-se ao inimigo. Há aí uma relação de reciprocidade existencial, de entendimento e de reconhecimento do eu a partir do outro, de modo a incorporar o oponente e toda a complexa trama de relações tecidas durante a guerra.

No livro Metafísicas canibais, Eduardo Viveiros de Castro desenvolve o conceito de “canibalismo”, porém em um registro distinto do registro eurocêntrico. Não se trata de uma prática de saciedade nutricional. Trata-se de uma prática que se inscreve na lógica de guerra de povos que não concebem o oponente sob o ponto de vista de sua eliminação material e moral, conforme é comum a partir da perspectiva da máquina de guerra genocida desenvolvida a partir da Idade Moderna na Europa, máquina essa responsável pela eliminação de povos inteiros na América. Entre os tupinambás, há uma espécie de respeito mútuo, a morte do outro não significa a superação da guerra, para que um vencedor possa conquistar a terra, as gentes e impor seus valores. A morte do outro é a manutenção de práticas e valores de um povo para o qual o conflito não termina, pois compõe a sua própria existência.

Feitas essas observações antropológicas que se distanciam dos equívocos eurocêntricos, pode-se dizer que os tupinambás eram canibais.

 

 

 

Última modificação em Quarta, 11 Dezembro 2024 17:13

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